Espinosa, Tratado Teológico-Político, cap. 7.
Por: Giorgio Gonçalves Ferreira
Os textos bíblicos são considerados sagrados para a parte da população
que professa a fé cristã. No entanto, um problema parece pairar no ar: em que
medida esses textos são lidos devidamente? E em que medida são devidamente
compreendidos? Por que textos que professam o amor e a paz são constantemente
usados para justificar o crime, o assassinato, o preconceito, o armamento da
população, etc.? Por que textos que trazem como um de seus primeiros
mandamentos amar ao próximo como a si mesmo são constantemente usados como
justificativa para crimes de ódio? Qual parte da obra não foi devidamente
compreendida? O problema não é novo e já foi abordado séculos atrás pelo
filósofo holandês Baruch de Espinosa, em seu Tratado Teológico-Político.
Espinosa identifica — dentre uma série de fatores — um elemento que é crucial
para o problema: saber interpretar uma obra.[1]
Espinosa indica que o método para interpretar uma obra deve partir dos
elementos que a engendram, quais sejam, (i) os aspectos linguísticos, (ii) o conteúdo e (iii) aspectos conjunturais
(cf. TTP, VII, 117-120)[2]. No primeiro caso, o
intérprete deve estar atento a questões tais como a língua em que a obra foi
escrita originalmente, aspectos culturais, semânticos e retóricos dessa língua,
bem como o gênero textual em questão. Além disso, o
conteúdo da obra deve ser compreendido como um todo orgânico e não como um
conjunto de enunciados aleatórios. Por fim, deve-se buscar
pelos elementos conjunturais, seja em seu aspecto discursivo, seja em seu
aspecto histórico. Nesse sentido, deve-se buscar compreender quem
escreveu os textos em questão, para quem eles foram escritos e com que
finalidade. Da mesma maneira, deve-se buscar compreender qual a história da
obra e saber se ela foi editada e por quem.
Quanto aos aspectos linguísticos, a primeira questão é o problema óbvio
de tradução. Os textos bíblicos foram escritos em hebraico, aramaico, grego,
etc., e com grandes intervalos de tempo entre um e outro. Expressões traduzidas
como “espírito de Deus” podem ser traduzidas também como “vento fortíssimo”, “uma
virtude ou força fora do comum”, etc., de modo que “o espírito de Deus repousa
sobre as águas” também poderia ser traduzido como “um vento/vapor muito forte
pairava sobre as águas”. Isto porque, dentre outras coisas, a palavra hebraica
“ruagh”, usada para designar “espírito”, também pode designar “vento”,
“hálito”, “respiração”, “virtude”, “intenção”, etc.; e, por outro lado, a
expressão “de Deus”, também pode designar o superlativo (cf. TTP, I, 15-31).
Outro ponto são as figuras de linguagem empregadas pelos escritores daquela
língua. Espinosa indica, por exemplo, que é comum os escritores hebraicos
colocarem o texto na voz passiva como um sinal de devoção, e não é senão isso o
que ocorre quando se diz que foi a água que surgiu da pedra, quando, na
verdade, foram os hebreus que a encontraram (cf. TTP, VI, 110-111). O recurso,
aqui, é semelhante àquele usado pelos marinheiros quando dizem “Terra à vista”,
como se a terra surgisse da água, ao invés de afirmar que eles chegaram à
costa. Muitos dos “milagres”, nos diz Espinosa, não passam de figuras de
retórica mal compreendidas e interpretadas ao pé da letra.
Quanto ao conteúdo do
texto, Espinosa destaca a necessidade de compreender, dentre outras coisas, o
pensamento de seus autores como um todo. Esse aspecto é relevante pois compõem
parte do discurso e um elemento importante para a apreensão de seu sentido.
Sobre esse assunto, Espinosa oferece como exemplo o fato de Moisés indicar que
“Deus é fogo” (Dt. 4:24), “Deus é ciumento” (Ex. 20:4) e que Deus não parece
com nada visível. Essas duas afirmações se conciliariam facilmente haja vista
que “fogo”, no hebraico, também era usado metaforicamente para sentimentos como
ira e ciúme. Nesse sentido, o termo “fogo” designaria aspectos dos sentimentos
divinos e não algo visível; seria possível, assim, conciliar as afirmações
contidas nos livros de Moisés. Assim, com base na norma linguística e nos
enunciados de Moisés, Espinosa pode inferir que “Deus é fogo” e “Deus é
ciumento” constituem um mesmo enunciado (cf. TTP, VII, 118-119) e que a
afirmação de que Deus é fogo não contradiz a afirmação de que Deus não se parece
com algo visível.
Acerca dos aspectos conjunturais, Espinosa indica dois
elementos. O primeiro consiste em elementos discursivos do texto[3],
como, por exemplo, considerar quem fala, para quem fala e em que condições
aquilo foi dito. Como exemplo, Espinosa oferece duas
passagens aparentemente contraditórias, no caso, o enunciado “àquele que te
bate na face direita oferece-lhe também a outra” e o enunciado “olho por olho,
dente por dente” (Ex. 21:24). Quanto ao primeiro enunciado, Espinosa
indica que quem o disse foi Jesus Cristo. Nesse sentido, é importante destacar
que Jesus falava enquanto sábio — e não enquanto legislador; além disso, se dirigia
a pessoas oprimidas e que lamentavam o fato dos
homens dedicarem suas vidas a coisas terrenas (“aqueles
que choram”); e, dirigindo-se a esses homens, enquanto sábio, pregava
conselhos em um momento de dissolução do estado e no qual a justiça era
totalmente desprezada (cf. TTP, VII, 121-122). O segundo enunciado, por sua
vez, foi dito por Moisés — que falava enquanto legislador, e não enquanto
sábio. Nesse sentido, Moisés se dirigia aos juízes e estava estabelecendo leis
em um momento de constituição do estado em um determinado momento histórico
(cf. TTP, VII, 122). Dessa maneira, o enunciado dito por Jesus Cristo não
conflita com o de Moisés pelo fato do primeiro configurar-se enquanto um
conselho — e não enquanto uma lei — e ser proferido em um momento de dissolução
do estado; por outro lado, o segundo enunciado, proferido por Moisés, instituía
leis para a consolidação do estado. É perfeitamente possível indicar aos juízes quais leis devem ser seguidas
pelo Estado e reconhecer que, na corrupção do Estado, os oprimidos devem
procurar maneiras individuais de se resguardarem. Como fica claro pelo exemplo,
o sentido de tais enunciados não pode ser ignorado caso se ignore os elementos
discursivos no qual estão inseridos.
O segundo elemento dos aspectos conjunturais consiste
na compreensão dos percalços históricos do texto, quais sejam, suas edições,
alterações, rasuras e mutilações. No caso dos textos bíblicos um dos fatores
mais impactantes diz respeito à história da própria língua hebraica, seja
porque as vogais ainda não eram escritas na época em que os textos foram
redigidos e foram adicionadas posteriormente, alterando o sentido de alguns
enunciados; seja porque, em muitos casos, letras iguais eram usadas para designar
sons diferentes; ou porque conjunções e advérbios poderiam ter inúmeros
significados, etc. Outro elemento é a ignorância acerca da autoria e época de
muitos livros. Mais outro elemento reside no fato de só chegarem até nós as
traduções. E, por fim, os erros de compilação, as alterações, os elementos
retirados e outros adicionados aos livros (TTP, VII, 124-132). Tudo isso deve
ser levado em consideração para uma boa leitura e interpretação dos textos
bíblicos.
O método de interpretação indicado por Espinosa não se
aplica apenas aos textos bíblicos, mas a todo e qualquer texto. É importante
conhecer o texto na língua original em que ele foi escrito; buscar compreender
o texto como um todo orgânico e não apenas como um conjunto de conteúdos soltos
e desconexos entre si; identificar os elementos conjunturais do texto, seja em
seus aspectos discursivos, seja em seus aspectos históricos. Diante de tantos
elementos importantes para uma boa interpretação, tentar encobrir a própria
ignorância com base em uma pretensa “iluminação divina” — como feito por muitos
— certamente não é o método mais eficaz para compreender o sentido do texto.
Importante destacar a atualidade do método proposto por Espinosa em 1670 que,
como já apontado, não se aplica apenas a textos bíblicos mas a todo e qualquer
texto, sejam obras da literatura, documentos históricos, obras de filosofia ou
de ciência, etc.
Retornando ao início do texto, quando se observa
tantos grupos defendendo homofobia, racismo, machismo, perseguição aos pobres,
armamento da população, etc., tudo isso com base em um texto mal lido e mal
interpretado — para não falar nos casos claros de picaretagem —, percebe-se que
o diagnóstico de Espinosa há mais de três séculos estava correto. Ei-lo:
É ver como andam quase
todos fazendo passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não
procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros
para que pensem como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupada é
em saber como extorquir dos Livros Sagrados as suas próprias fantasias e
arbitrariedades, corroborando-as com a autoridade divina. Nem há mesmo nada que eles façam com menos
escrúpulos e com maior temeridade que a interpretação da Escritura […]. E tudo
quanto nesse seu delírio inventam é atribuído ao Espírito Santo e defendido com
toda a veemência e paixão. […] Ora, para sair de tais confusões […] temos de
abordar e discutir o verdadeiro método para interpretar a Escritura. (TTP, cap.
VII)
REFERÊNCIAS:
FERREIRA, Giorgio Gonçalves. Algumas considerações sobre a memória, a formação das palavras e as regras do método hermenêutico de Espinosa. In: Modernos & Contemporâneos: Revista de Filosofia do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, v. 6, n. 14., jan./jun., 2022, p. 125-144.
PÊCHEUX, Michel. Remontons de Foucault à Spinoza. In: MALDIDIER, D. L'inquiétude du discours. Paris: Cendres, 1990. p. 245-260.
______.
Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (orgs.). Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p. 61-105.
[1] O tema do método hermenêutico de Espinosa
também é tratado em FERREIRA, 2022, 134-138.
[2] O Tratado Teológico-Político, de
Espinosa, será citado conforme sua notação técnica, qual seja, a abreviação do
nome da obra em latim, indicação do capítulo em algarismo romano e número da
página em algarismo arábico. Dessa forma, por exemplo, TTP, VII, 117 refere-se
a Tractatus Theologico-Politicus, capítulo
sete, página 117.
[3] A noção de discurso está sendo entendida
conforme Michel Pêcheux, isto é, como um elemento intermediário entre a língua
e a fala (PÊCHEUX, 1997 [1969], p. 73-74) e que é enunciado conforme condições
de produção dadas (PÊCHEUX, 1997 [1969], p. 76-77). Sobre a presença de noções
da análise do discurso na obra de Espinosa, cf. PÊCHEUX, 1990.
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