Thomas Leuri narra suas memórias da primeira infância, as dificuldades em encontrar-se, a descoberta da homossexualidade e o sentimento de não pertencimento.
Por: Thomas Leuri
As lembranças de infância com meu pai são poucas. Sempre fui muito apegado à minha mãe, e me aproximar do meu pai parecia significar um afastamento dela. Desejava aproveitar todos os momentos ao lado dela. Lembro-me dela no fogão, preparando o almoço, enquanto eu me agarrava à barra do seu vestido. Meus irmãos assistiam a desenhos animados na televisão, aguardando a chegada do nosso pai para o almoço.
Quando ele chegava, meus irmãos corriam para abraçá-lo, enquanto eu o observava com curiosidade e um sorriso tímido, segurando firme a barra do vestido da minha mãe. Sentia-me seguro ao lado dela. Confesso que, em alguns momentos, desejei ir ao encontro dele, especialmente quando eles brincavam de luta no quarto. Nesses momentos, meu pai me chamava: "Vem, filho, brincar com o papai." Eu olhava para ele com a mesma curiosidade e timidez, respondendo: "Não, vou ficar com a minha mãe."
Às vezes, eu me sentava no sofá, de onde podia vê-los brincando. Minha mãe, percebendo meu olhar, dizia: "Vá, meu filho, brincar com seu pai." Meu pai repetia o convite, e eu sempre respondia: "Não, vou ficar com a minha mãe." Isso acontecia todos os dias.
Quando meus pais se separaram, eu tinha entre 4 e 5 anos, meu irmão Phillip tinha cerca de 6 anos, e Rafael, 8. Minha mãe nos deixou com meu pai e nossa madrasta, prometendo que voltaria para nos buscar. Esse acordo entre ela e meu pai, que se chamava Pedro, foi cumprido.
Rafael, sempre o irmão mais velho protetor, sentia-se responsável por Phillip e por mim. Nas visitas à nossa mãe, íamos todos à casa da tia Maria, uma das irmãs mais velhas da nossa mãe. Ao chegar lá, lembro-me do olhar da nossa mãe, do seu cheiro, do seu toque. Através dos seus olhos, eu via todo o amor que ela tinha por nós, um amor que transbordava em lágrimas emocionadas, em abraços calorosos e em sua voz adocicada.
Rafael era nosso guardião. Sua proteção tinha um preço: nossa madrasta batia nele, especialmente quando ele defendia nossa mãe das palavras maldosas que ela dizia na nossa frente. Rafael a defendia com bravura, mesmo sabendo que isso lhe custaria caro.
Rafael sempre contava à nossa mãe tudo o que acontecia, tudo o que nossa madrasta nos fazia. Nossa mãe então perguntava: “E o Pedro, o que ele fala e faz a respeito disso?” Rafael respondia: “Nada, Mãinha, porque ela não faz essas coisas na frente de painho.” Eu via a tristeza e a preocupação no olhar de nossa mãe para a tia Maria, como se ela se sentisse culpada por nos deixar morando com nosso pai. Ela ainda não tinha condições de cumprir a promessa de nos levar, então nos mandava brincar e ficava conversando com tia Maria sobre o assunto.
No final da tarde, era hora de ir embora, sempre um momento muito triste. Meu coração se apertava e eu chorava desesperadamente, não queria voltar para casa e deixar minha mãe novamente. Nos abraçávamos e ela sempre prometia que um dia nos levaria para morarmos juntos. Essa cena se repetia todos os finais de semana.
Fomos para uma nova escola, Phillip, Rafael e eu. Nossa madrasta sempre nos mudava de escola quando descobria que nossa mãe tinha nos visitado no recreio. Sentia-me mais seguro com meus irmãos, mas sempre nos colocavam em salas diferentes, por causa da diferença de idade. Tinha medo, não me sentia seguro com tantas crianças desconhecidas. Sinto-me só, elas são estranhas, ou será que o estranho sou eu? Preferia ficar sozinho, observando a molecada brincar. Às vezes, tinha vontade de brincar com elas, mas será que me aceitariam? Achava melhor apenas observá-las, parecia mais seguro. Eles são diferentes de mim, ou sou eu que sou diferente deles? Talvez fosse melhor eu ficar sozinho.
Havia dias em que nossa mãe nos visitava na casa do nosso pai. Ficávamos brincando no quintal, constantemente olhando para a rua, pois nossa madrasta raramente nos deixava sair para brincar fora de casa. Costumávamos avistá-la sentada na calçada da casa do vizinho, esperando nos ver. Quando um de nós se dava conta, chamava os outros e todos íamos ao seu encontro, sempre uma grande alegria. Certa vez, ela nos levou chocolate em pó. Sempre que nos visitava, levava presentes. Tudo tinha que ser rápido, pois nossa madrasta não podia nos ver com nossa mãe. Abraçávamo-nos e voltávamos correndo para casa pelo portão do beco, para que nossa madrasta não nos visse.
No dia em que ela nos levou o achocolatado, voltando pelo beco, parei no portão e olhei novamente para a minha mãe, tentando captar sua imagem para que ficasse registrada em minha memória, pois não sabia quando a veria novamente. Rafael e Phillip foram na frente, como sempre. Ao chegar à porta do quintal, vi Phillip e Rafael parados na entrada da cozinha, enquanto nossa madrasta os questionava sobre o chocolate. Rafael respondeu: “Foi nossa mãe.” Ela tomou o presente bruscamente das mãos de Rafael. Senti seu olhar de raiva, sua feição mudou, e sua voz também. Ela disse: “Olhem o que eu farei com o chocolate.” Com fúria, abriu a lata e derramou todo o pó achocolatado na porta do quintal.
Naquele momento, fixei meu olhar no pó amarronzado caindo no chão. Era como se pudesse ver cada grão dispersar-se, formando uma nuvem de poeira perfumada que impregnava todo o ambiente com o aroma do chocolate. A imagem de Mãinha, que eu havia tentado gravar na memória ao parar no portão, veio à minha mente. A tristeza nos envolvia; vi os olhos de Phillip e Rafael marejados, assim como os meus.
Mãinha finalmente cumpriu sua promessa. Conseguiu um emprego em um orfanato e veio nos buscar. Dessa vez, não olhei para trás em busca de memórias fotográficas, olhei para frente, firme, emocionado e com o coração cheio de amor e esperança de dias melhores, pois era um dia tão sonhado e esperado pelos meus irmãos e eu. Apesar do apego e do grande amor por minha mãe, sentia falta da presença do meu pai. Mesmo me recusando a brincar com ele, era reconfortante saber que ele estava ali, que éramos uma família.
Os dias dos pais na escola eram sempre muito tristes, principalmente quando ganhávamos presentes ou tínhamos que fazer alguma lembrança para entregarmos ao nosso pai. Ficava confuso, pois não tínhamos uma figura paterna em casa. Aprendemos a ver nossa mãe como pai também, materializando nela essa figura. Assim, nossa família se completava: três filhos sendo criados por uma mãe solo, que assumia ambos os papéis. Ver minha mãe como pai também duplicava o amor que eu tinha por ela, pois nela se multiplicava o amor.
Mãe preta, solteira, pobre com três filhos para criar, Rafael, Phillip e eu, Thomas. Tudo era muito desafiador. Havia dias em que não tínhamos com o que tomar café da manhã. Nesses dias eu preferia acordar um pouco mais tarde, pois assim ficaria mais próximo do almoço ou, ao acordar e ver que não tínhamos o que comer, voltava para a cama e procurava dormir um pouco mais. Assim conseguia enganar a fome, enchendo a barriga de sonhos de dias melhores. Nos dias seguintes, de modo geral, o problema havia sido sanado, tínhamos com o que tomarmos café. Mãinha dividia um pão para nós três, mas acabava ficando sem o que comer. Eu me sentia triste e lhe perguntava se não iria comer, e então ela me dizia que já havia comido, mas que eu não tinha visto. E assim eram nossos dias: em um dia, café da manhã, almoço e janta; em outros, faltava-nos o café. Contudo, o que nunca nos faltava era o amor, carinho e cuidados. Diziam que o amor não enche a barriga, e realmente não enche, mas nos sustentava, nos mantinha juntos e unidos, fazendo-nos compreender o valor e a importância das coisas. Aprendíamos que a luta era diária e que a felicidade era um instante, e não uma constante.
Naquele dia, como em tantos outros, acordei e Mãinha já tinha saído para o trabalho. Lembrei-me de que precisava levantar para varrer a casa, pois, enquanto ela trabalhava, nós cuidávamos do lar. O Rafael lavava os pratos, o Phillip os enxugava e guardava, e eu varria a casa. De tempos em tempos, trocávamos os afazeres e, a cada final de semana, um de nós lavava o banheiro, ajudando nossa mãe. Ela acordava cedo, às cinco da manhã, preparava a comida e ia para o orfanato cuidar dos filhos que outros pais abandonaram, tendo pouco tempo para ficar com os próprios filhos, pois só chegava em casa às oito da noite.
No entanto, os dias de folga de Mãinha eram diferentes. Num desses dias, ela já tinha terminado o almoço e estava preparando uma salada de chuchu, sabendo que eu gostava muito. Quando me aproximei, ela colocou alguns pedaços em um pires e me ofereceu. Corri alegremente e me sentei à porta de casa, observando a vida, o movimento da rua, vendo o tempo passar. Ao perceber que a salada estava acabando, voltei e pedi um pouco mais. Mãinha abriu um doce sorriso e disse: “Menino, assim não sobrará nada para o almoço”. Voltei a correr feliz para a porta de casa, com o pires cheio de chuchu, um sabor que, era ao mesmo tempo, de nada e de tudo, o sabor da minha infância. Não tínhamos brinquedos, brincávamos com o que achávamos pela frente, tudo se tornava matéria para as nossas fantasias, os palitos de fósforo usados viravam bonecos de luta. E na luta, quando eles morriam, quebrávamos os palitos ao meio. As caixinhas de fósforos vazias viravam carros, a caixa de pasta de dentes transformava-se em caminhões e as caixas de sapatos viraram trios elétricos. Era assim que fazíamos o nosso carnaval.
Quando íamos tomarmos banho na bacia, a vasilha que usávamos para jogar água em nossos corpos, utilizávamos para brincar de vendedores de leite. E assim contávamos quantos litros de leite o cliente iria querer, fantasiando que a água do banho era leite, o que sempre faltava em nossa casa. Só depois do teatro envolvendo a compra do leite poderíamos jogar a água em nossos corpos. Tudo virava brincadeira, tudo virava brinquedos.
Em nossa casa, leite era luxo; margarina era luxo; frutas? Nunca tínhamos. Carne era artigo raro. Por causa das nossas limitações econômicas, quando Mãinha conseguia comprar, precisava ser regrado. Normalmente comíamos feijão, arroz e ovo. Frango era artigo esporádico. Às vezes tínhamos só o feijão com arroz. Na merenda, café com farinha ou leite com farinha – quando tínhamos leite em casa. Mas tudo feito sempre com muito amor, nunca reclamamos de nada, nunca pedíamos o que sabíamos que Mãinha não podia comprar, pois não queríamos vê-la triste por não poder nos dar o que pedíamos.
Nos finais de semanas nem sempre temos o que comermos, então Mãinha nos manda tomarmos banho e separa uma roupa para vestimos, quando todos estamos prontos, passa na casa da tia Maria em busca de ajuda, então lhe diz, “lá em nossa casa não tenho nada para dar aos meus filhos para comerem, podemos almoçarmos aqui”? Então ao perceber que não obteve resposta segurava em nossas mãos e saímos na esperança de encontramos uma outra casa para almoçarmos.
Chegamos na casa da tia Lucia, que nos recebeu muito bem, tranquilizando Mãinha dizendo que dividiria o que tinha feito conosco, vejo o olhar de nossa mãe brilhar e lacrimejar de alegria e tranquilidade, agradece a tia Lucia emocionada pois Mãinha fica sempre tensa e nervosa quando não encontra o que nos dá para comermos, vivi essa tensão diariamente, principalmente nos finais de semanas.
Mãinha nos matriculou na Escola Coração de Jesus, que fica no mesmo espaço do orfanato onde ela trabalha. Isso nos permitia passar mais tempo sob seus cuidados, já que ela passava mais tempo no orfanato do que em casa. Estudávamos e, após as aulas, ficávamos no orfanato junto com as crianças. Passávamos o dia lá e, à noite, íamos para casa com ela. Mãinha nos deixava escolher entre ficar em casa, onde não podíamos sair para brincar na rua, a menos que ela estivesse presente, ou ficar com ela no orfanato.
Nossa infância foi passada junto às crianças do orfanato. Dias das Crianças, Semana Santa, festas de Natal – essas eram as maneiras de passarmos mais tempo com nossa mãe, que só vinha para casa à noite, sempre muito cansada e sentindo dores. Quando eu perguntava o que havia de errado, ela disfarçava e dizia que estava tudo bem. Eu preferia não insistir para não a estressar ainda mais.
Tenho uma conexão profunda com Mãinha. Consigo sentir o que ela sente, prever seus pensamentos e preocupações. Conheço cada movimento, olhar, gesto, seu jeito de andar e sentar-se, suas ansiedades. Para cada um de seus sentimentos, ela tem um comportamento, um gesto, um olhar. Consigo sentir sua energia.
Hoje é mais um dia de folga de Mãinha. Phillip e Rafael decidiram jogar bola no campinho próximo à nossa casa, em frente ao barracão do pai Naldo. Não gosto de jogar bola; acho chato ver um monte de meninos correndo atrás de uma bola para chutá-la e acertar uma rede. Qual é a graça nisso? Ainda assim, depois de alguns convites, tento brincar um pouco. Na escolha do time, ninguém me escolhe, pois sabem que não gosto e nem sei jogar. Entro no time como o que sobrou, brinco por alguns minutos e depois saio, achando que é uma perda de tempo. Volto para casa e fico na companhia de Mãinha, que é bem melhor. Todas as brincadeiras dos meus irmãos, primos e colegas são chatas e monótonas para mim. Não vejo nada que me atraia, que desafie minha sabedoria ou meu esforço cognitivo, algo que me mova.
Na ausência de Mãinha, a solidão sempre foi minha melhor companhia. Mas nunca me sentia realmente só; sempre sentia fortemente a presença de algo, de alguém que não via, mas sentia. Muitas vezes corria em busca da presença de alguém visível, mas em meus sonhos eu os via: espíritos, divindades, ancestralidades, orixás, exus. Sonhava com o sagrado.
A única companhia carnal que me faz sentir bem é a presença de minha mãe; todas as outras me incomodam de alguma forma. Foi nesse período que tive meus primeiros contatos com a religião de matriz africana. Ainda que aos 6 anos de idade eu não entendesse muito, comecei a compreender melhor quando o pai Naldo nos convidava para as festas de seus orixás. Mãinha gostava de ir ao bar do Vaninho nos finais de semana, em frente ao barracão. Nos dias de festa, ela ia ao bar com suas amigas, levando Rafael, Phillip e eu. Quando chegávamos, ela nos perguntava se queríamos ficar no bar ou na festa, e sempre preferíamos a festa. Ela nos levava, ficava um pouco e depois voltava para o bar.
Na festa, havia a quitanda de Erê. Fiquei completamente encantado com tudo o que via. Sentia uma energia muito forte, não conseguia parar de olhar, observando cada detalhe, cada movimento. Os atabaques pareciam tocar minha alma. Sentia que aquele era meu lugar, como se sempre tivesse feito parte dele, sem entender por que não fazia parte de tudo aquilo, por que era apenas convidado e não pertencente daquele lugar.
Sentia uma mistura de sentimentos que não conseguia entender ou decifrar. Só sabia que me tocava, me emocionava, me chamava, me convidava. Uma energia, um sentimento que dizia: "Aqui é o seu lugar." Quando chegou a hora de irmos embora, Mãinha veio nos buscar. Após toda aquela mistura de emoções, senti tristeza, pois não queria ir. Gostaria de ficar um pouco mais. Por que não esperar acabar? Saí com tristeza e ansiedade, ansioso pelo próximo convite, pela próxima festa. Quando poderia experimentar tudo aquilo novamente? Será que iria demorar?
Às vezes, eu me sentava no sofá, de onde podia vê-los brincando. Minha mãe, percebendo meu olhar, dizia: "Vá, meu filho, brincar com seu pai." Meu pai repetia o convite, e eu sempre respondia: "Não, vou ficar com a minha mãe." Isso acontecia todos os dias.
Quando meus pais se separaram, eu tinha entre 4 e 5 anos, meu irmão Phillip tinha cerca de 6 anos, e Rafael, 8. Minha mãe nos deixou com meu pai e nossa madrasta, prometendo que voltaria para nos buscar. Esse acordo entre ela e meu pai, que se chamava Pedro, foi cumprido.
Rafael, sempre o irmão mais velho protetor, sentia-se responsável por Phillip e por mim. Nas visitas à nossa mãe, íamos todos à casa da tia Maria, uma das irmãs mais velhas da nossa mãe. Ao chegar lá, lembro-me do olhar da nossa mãe, do seu cheiro, do seu toque. Através dos seus olhos, eu via todo o amor que ela tinha por nós, um amor que transbordava em lágrimas emocionadas, em abraços calorosos e em sua voz adocicada.
Rafael era nosso guardião. Sua proteção tinha um preço: nossa madrasta batia nele, especialmente quando ele defendia nossa mãe das palavras maldosas que ela dizia na nossa frente. Rafael a defendia com bravura, mesmo sabendo que isso lhe custaria caro.
Rafael sempre contava à nossa mãe tudo o que acontecia, tudo o que nossa madrasta nos fazia. Nossa mãe então perguntava: “E o Pedro, o que ele fala e faz a respeito disso?” Rafael respondia: “Nada, Mãinha, porque ela não faz essas coisas na frente de painho.” Eu via a tristeza e a preocupação no olhar de nossa mãe para a tia Maria, como se ela se sentisse culpada por nos deixar morando com nosso pai. Ela ainda não tinha condições de cumprir a promessa de nos levar, então nos mandava brincar e ficava conversando com tia Maria sobre o assunto.
No final da tarde, era hora de ir embora, sempre um momento muito triste. Meu coração se apertava e eu chorava desesperadamente, não queria voltar para casa e deixar minha mãe novamente. Nos abraçávamos e ela sempre prometia que um dia nos levaria para morarmos juntos. Essa cena se repetia todos os finais de semana.
Fomos para uma nova escola, Phillip, Rafael e eu. Nossa madrasta sempre nos mudava de escola quando descobria que nossa mãe tinha nos visitado no recreio. Sentia-me mais seguro com meus irmãos, mas sempre nos colocavam em salas diferentes, por causa da diferença de idade. Tinha medo, não me sentia seguro com tantas crianças desconhecidas. Sinto-me só, elas são estranhas, ou será que o estranho sou eu? Preferia ficar sozinho, observando a molecada brincar. Às vezes, tinha vontade de brincar com elas, mas será que me aceitariam? Achava melhor apenas observá-las, parecia mais seguro. Eles são diferentes de mim, ou sou eu que sou diferente deles? Talvez fosse melhor eu ficar sozinho.
Havia dias em que nossa mãe nos visitava na casa do nosso pai. Ficávamos brincando no quintal, constantemente olhando para a rua, pois nossa madrasta raramente nos deixava sair para brincar fora de casa. Costumávamos avistá-la sentada na calçada da casa do vizinho, esperando nos ver. Quando um de nós se dava conta, chamava os outros e todos íamos ao seu encontro, sempre uma grande alegria. Certa vez, ela nos levou chocolate em pó. Sempre que nos visitava, levava presentes. Tudo tinha que ser rápido, pois nossa madrasta não podia nos ver com nossa mãe. Abraçávamo-nos e voltávamos correndo para casa pelo portão do beco, para que nossa madrasta não nos visse.
No dia em que ela nos levou o achocolatado, voltando pelo beco, parei no portão e olhei novamente para a minha mãe, tentando captar sua imagem para que ficasse registrada em minha memória, pois não sabia quando a veria novamente. Rafael e Phillip foram na frente, como sempre. Ao chegar à porta do quintal, vi Phillip e Rafael parados na entrada da cozinha, enquanto nossa madrasta os questionava sobre o chocolate. Rafael respondeu: “Foi nossa mãe.” Ela tomou o presente bruscamente das mãos de Rafael. Senti seu olhar de raiva, sua feição mudou, e sua voz também. Ela disse: “Olhem o que eu farei com o chocolate.” Com fúria, abriu a lata e derramou todo o pó achocolatado na porta do quintal.
Naquele momento, fixei meu olhar no pó amarronzado caindo no chão. Era como se pudesse ver cada grão dispersar-se, formando uma nuvem de poeira perfumada que impregnava todo o ambiente com o aroma do chocolate. A imagem de Mãinha, que eu havia tentado gravar na memória ao parar no portão, veio à minha mente. A tristeza nos envolvia; vi os olhos de Phillip e Rafael marejados, assim como os meus.
Mãinha finalmente cumpriu sua promessa. Conseguiu um emprego em um orfanato e veio nos buscar. Dessa vez, não olhei para trás em busca de memórias fotográficas, olhei para frente, firme, emocionado e com o coração cheio de amor e esperança de dias melhores, pois era um dia tão sonhado e esperado pelos meus irmãos e eu. Apesar do apego e do grande amor por minha mãe, sentia falta da presença do meu pai. Mesmo me recusando a brincar com ele, era reconfortante saber que ele estava ali, que éramos uma família.
Os dias dos pais na escola eram sempre muito tristes, principalmente quando ganhávamos presentes ou tínhamos que fazer alguma lembrança para entregarmos ao nosso pai. Ficava confuso, pois não tínhamos uma figura paterna em casa. Aprendemos a ver nossa mãe como pai também, materializando nela essa figura. Assim, nossa família se completava: três filhos sendo criados por uma mãe solo, que assumia ambos os papéis. Ver minha mãe como pai também duplicava o amor que eu tinha por ela, pois nela se multiplicava o amor.
Mãe preta, solteira, pobre com três filhos para criar, Rafael, Phillip e eu, Thomas. Tudo era muito desafiador. Havia dias em que não tínhamos com o que tomar café da manhã. Nesses dias eu preferia acordar um pouco mais tarde, pois assim ficaria mais próximo do almoço ou, ao acordar e ver que não tínhamos o que comer, voltava para a cama e procurava dormir um pouco mais. Assim conseguia enganar a fome, enchendo a barriga de sonhos de dias melhores. Nos dias seguintes, de modo geral, o problema havia sido sanado, tínhamos com o que tomarmos café. Mãinha dividia um pão para nós três, mas acabava ficando sem o que comer. Eu me sentia triste e lhe perguntava se não iria comer, e então ela me dizia que já havia comido, mas que eu não tinha visto. E assim eram nossos dias: em um dia, café da manhã, almoço e janta; em outros, faltava-nos o café. Contudo, o que nunca nos faltava era o amor, carinho e cuidados. Diziam que o amor não enche a barriga, e realmente não enche, mas nos sustentava, nos mantinha juntos e unidos, fazendo-nos compreender o valor e a importância das coisas. Aprendíamos que a luta era diária e que a felicidade era um instante, e não uma constante.
Naquele dia, como em tantos outros, acordei e Mãinha já tinha saído para o trabalho. Lembrei-me de que precisava levantar para varrer a casa, pois, enquanto ela trabalhava, nós cuidávamos do lar. O Rafael lavava os pratos, o Phillip os enxugava e guardava, e eu varria a casa. De tempos em tempos, trocávamos os afazeres e, a cada final de semana, um de nós lavava o banheiro, ajudando nossa mãe. Ela acordava cedo, às cinco da manhã, preparava a comida e ia para o orfanato cuidar dos filhos que outros pais abandonaram, tendo pouco tempo para ficar com os próprios filhos, pois só chegava em casa às oito da noite.
No entanto, os dias de folga de Mãinha eram diferentes. Num desses dias, ela já tinha terminado o almoço e estava preparando uma salada de chuchu, sabendo que eu gostava muito. Quando me aproximei, ela colocou alguns pedaços em um pires e me ofereceu. Corri alegremente e me sentei à porta de casa, observando a vida, o movimento da rua, vendo o tempo passar. Ao perceber que a salada estava acabando, voltei e pedi um pouco mais. Mãinha abriu um doce sorriso e disse: “Menino, assim não sobrará nada para o almoço”. Voltei a correr feliz para a porta de casa, com o pires cheio de chuchu, um sabor que, era ao mesmo tempo, de nada e de tudo, o sabor da minha infância. Não tínhamos brinquedos, brincávamos com o que achávamos pela frente, tudo se tornava matéria para as nossas fantasias, os palitos de fósforo usados viravam bonecos de luta. E na luta, quando eles morriam, quebrávamos os palitos ao meio. As caixinhas de fósforos vazias viravam carros, a caixa de pasta de dentes transformava-se em caminhões e as caixas de sapatos viraram trios elétricos. Era assim que fazíamos o nosso carnaval.
Quando íamos tomarmos banho na bacia, a vasilha que usávamos para jogar água em nossos corpos, utilizávamos para brincar de vendedores de leite. E assim contávamos quantos litros de leite o cliente iria querer, fantasiando que a água do banho era leite, o que sempre faltava em nossa casa. Só depois do teatro envolvendo a compra do leite poderíamos jogar a água em nossos corpos. Tudo virava brincadeira, tudo virava brinquedos.
Em nossa casa, leite era luxo; margarina era luxo; frutas? Nunca tínhamos. Carne era artigo raro. Por causa das nossas limitações econômicas, quando Mãinha conseguia comprar, precisava ser regrado. Normalmente comíamos feijão, arroz e ovo. Frango era artigo esporádico. Às vezes tínhamos só o feijão com arroz. Na merenda, café com farinha ou leite com farinha – quando tínhamos leite em casa. Mas tudo feito sempre com muito amor, nunca reclamamos de nada, nunca pedíamos o que sabíamos que Mãinha não podia comprar, pois não queríamos vê-la triste por não poder nos dar o que pedíamos.
Nos finais de semanas nem sempre temos o que comermos, então Mãinha nos manda tomarmos banho e separa uma roupa para vestimos, quando todos estamos prontos, passa na casa da tia Maria em busca de ajuda, então lhe diz, “lá em nossa casa não tenho nada para dar aos meus filhos para comerem, podemos almoçarmos aqui”? Então ao perceber que não obteve resposta segurava em nossas mãos e saímos na esperança de encontramos uma outra casa para almoçarmos.
Chegamos na casa da tia Lucia, que nos recebeu muito bem, tranquilizando Mãinha dizendo que dividiria o que tinha feito conosco, vejo o olhar de nossa mãe brilhar e lacrimejar de alegria e tranquilidade, agradece a tia Lucia emocionada pois Mãinha fica sempre tensa e nervosa quando não encontra o que nos dá para comermos, vivi essa tensão diariamente, principalmente nos finais de semanas.
Mãinha nos matriculou na Escola Coração de Jesus, que fica no mesmo espaço do orfanato onde ela trabalha. Isso nos permitia passar mais tempo sob seus cuidados, já que ela passava mais tempo no orfanato do que em casa. Estudávamos e, após as aulas, ficávamos no orfanato junto com as crianças. Passávamos o dia lá e, à noite, íamos para casa com ela. Mãinha nos deixava escolher entre ficar em casa, onde não podíamos sair para brincar na rua, a menos que ela estivesse presente, ou ficar com ela no orfanato.
Nossa infância foi passada junto às crianças do orfanato. Dias das Crianças, Semana Santa, festas de Natal – essas eram as maneiras de passarmos mais tempo com nossa mãe, que só vinha para casa à noite, sempre muito cansada e sentindo dores. Quando eu perguntava o que havia de errado, ela disfarçava e dizia que estava tudo bem. Eu preferia não insistir para não a estressar ainda mais.
Tenho uma conexão profunda com Mãinha. Consigo sentir o que ela sente, prever seus pensamentos e preocupações. Conheço cada movimento, olhar, gesto, seu jeito de andar e sentar-se, suas ansiedades. Para cada um de seus sentimentos, ela tem um comportamento, um gesto, um olhar. Consigo sentir sua energia.
Hoje é mais um dia de folga de Mãinha. Phillip e Rafael decidiram jogar bola no campinho próximo à nossa casa, em frente ao barracão do pai Naldo. Não gosto de jogar bola; acho chato ver um monte de meninos correndo atrás de uma bola para chutá-la e acertar uma rede. Qual é a graça nisso? Ainda assim, depois de alguns convites, tento brincar um pouco. Na escolha do time, ninguém me escolhe, pois sabem que não gosto e nem sei jogar. Entro no time como o que sobrou, brinco por alguns minutos e depois saio, achando que é uma perda de tempo. Volto para casa e fico na companhia de Mãinha, que é bem melhor. Todas as brincadeiras dos meus irmãos, primos e colegas são chatas e monótonas para mim. Não vejo nada que me atraia, que desafie minha sabedoria ou meu esforço cognitivo, algo que me mova.
Na ausência de Mãinha, a solidão sempre foi minha melhor companhia. Mas nunca me sentia realmente só; sempre sentia fortemente a presença de algo, de alguém que não via, mas sentia. Muitas vezes corria em busca da presença de alguém visível, mas em meus sonhos eu os via: espíritos, divindades, ancestralidades, orixás, exus. Sonhava com o sagrado.
A única companhia carnal que me faz sentir bem é a presença de minha mãe; todas as outras me incomodam de alguma forma. Foi nesse período que tive meus primeiros contatos com a religião de matriz africana. Ainda que aos 6 anos de idade eu não entendesse muito, comecei a compreender melhor quando o pai Naldo nos convidava para as festas de seus orixás. Mãinha gostava de ir ao bar do Vaninho nos finais de semana, em frente ao barracão. Nos dias de festa, ela ia ao bar com suas amigas, levando Rafael, Phillip e eu. Quando chegávamos, ela nos perguntava se queríamos ficar no bar ou na festa, e sempre preferíamos a festa. Ela nos levava, ficava um pouco e depois voltava para o bar.
Na festa, havia a quitanda de Erê. Fiquei completamente encantado com tudo o que via. Sentia uma energia muito forte, não conseguia parar de olhar, observando cada detalhe, cada movimento. Os atabaques pareciam tocar minha alma. Sentia que aquele era meu lugar, como se sempre tivesse feito parte dele, sem entender por que não fazia parte de tudo aquilo, por que era apenas convidado e não pertencente daquele lugar.
Sentia uma mistura de sentimentos que não conseguia entender ou decifrar. Só sabia que me tocava, me emocionava, me chamava, me convidava. Uma energia, um sentimento que dizia: "Aqui é o seu lugar." Quando chegou a hora de irmos embora, Mãinha veio nos buscar. Após toda aquela mistura de emoções, senti tristeza, pois não queria ir. Gostaria de ficar um pouco mais. Por que não esperar acabar? Saí com tristeza e ansiedade, ansioso pelo próximo convite, pela próxima festa. Quando poderia experimentar tudo aquilo novamente? Será que iria demorar?
0 Comentários