Por: Iasmim Vieira Amaral
Palavras-Chave: Neil Gaiman; Morpheus; Signo; Símbolo.
INTRODUÇÃO
Neil Richard Mackinnon Gaiman é um escritor e roteirista britânico, nascido na vila de Portchester em 10 de maio de 1960, no sul da Inglaterra. O escritor tem como mais grandiosa obra prima a HQ “Sandman”, um marco na história dos quadrinhos, sendo composta por 75 capítulos e publicada pela DC Comics nos anos 80. A obra foi um sucesso, sendo um dos títulos mais vendidos da DC, superando até Batman e Superman. ‘’Sandman’’ foi uma das obras que lançaram a linha Vertigo, um selo dedicado ao público adulto, fundado quando quadrinhos maduros como Monstro do Pântano, Watchmen e Sandman começaram a fazer sucesso. Após o encerramento da linha Vertigo em 2020, “Sandman” passou a ser reimpressa sob o selo Black Label, selo herdeiro da Vertigo, também da DC Comics, que continuou o trabalho de seu antecessor, publicando e republicando títulos mais maduros.
A obra prima de Gaiman narra a saga de Sonho, um dos sete Perpétuos, entidades antropomórficas que simbolizam aspectos fundamentais da existência humana. Os Perpétuos são: Sonho, Morte, Desejo, Desespero, Delírio, Destruição e Destino. Intencionalmente, em inglês, todos os nomes começam com a letra “D”: Dream, Death, Desire, Despair, Delirium, Destruction e Destiny.
O protagonista, conhecido como Sonho, Morpheus, Oneiros e Devaneio, é o soberano do Reino dos Sonhos e lorde do Sonhar. Gaiman construiu este personagem a partir de várias fontes mitológicas e literárias, criando uma figura complexa e multifacetada.
A obra “Sandman” transcende o simples entretenimento, oferecendo uma experiência de leitura que é ao mesmo tempo intelectual e emocionalmente envolvente. Gaiman cria um tecido narrativo em que mitologia, cultura pop e questões existenciais se entrelaçam, oferecendo aos leitores uma visão profunda do mundo dos sonhos e além.
EXPLORANDO NOVAS POSSIBILIDADES
Em meados da década de 30, mais precisamente por volta de 1938, começa a era de ouro dos quadrinhos. Durante essa era, o gênero super-herói é estabelecido e popularizado quando a revista norte-americana Action Comics lança seu primeiro super-herói, o Superman. O gênero popularizou tanto que a DC começou a investir mais no formato e nos meses seguintes, a editora lançou outros títulos de sucesso como Aquaman, Batman e Mulher Maravilha.
Durante a Segunda Guerra Mundial, houve a onda de super-heróis patriotas, sempre trazendo referências norte-americanas que reforçava a hegemonia dos EUA, como é visto em “Capitão América” e no próprio Superman. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a época de ouro começa a decair e os quadrinhos de ficção científica e terror se popularizam, dando início então a era de prata.
Na era de prata, o sucesso com os quadrinhos sobre super-heróis nos EUA começou a decair e as editoras passaram a investir mais em outros gêneros. Um dos momentos mais marcantes da era de prata é quando o psiquiatra Frederick Wertham associa os quadrinhos à imoralidade, em seu livro Seduction Of The Innocent (1954). Por causa dessa discussão abordada pelo psiquiatra, os quadrinhos da época passaram pela ‘’era da inocência’’, onde as obras não discutiam mais questões profundas e caíram no maniqueísmo. Essas produções foram influenciadas pelo Comics Code de 1954, que controlava rigidamente o conteúdo das histórias. Tanto na era de ouro como na de prata, os quadrinhos tinham um público marcadamente infantil, que envolvia histórias com heróis sorridentes e literatura básica.
O rumo das histórias em quadrinhos norte-americanas seguia a tendência hegemônica e maniqueísta dos super-heróis, até que em 1980 a editora Karen Berger possibilita a ‘’invasão inglesa”, acarretando na criação do selo Vertigo. Karen traz diversos autores britânicos para o cenário dos quadrinhos americanos, começando com Alan Moore e sua obra “Monstro do Pântano”, até chegar em 1988 e Neil Gaiman nos apresentar Sandman. Nessa seara, Sandman é criado em um contexto pós-guerra, seguindo o rumo de mudança da soberania norte-americana nos quadrinhos, onde torna-se possível explorar personagens que fogem da ideia reducionista de ‘’bem e mal’’, experimentando novas possibilidades dentro da linguagem dos quadrinhos.
OS SIGNOS DE SONHO
- 1.1 Entre Sonho e Morpheus
Morpheus, na mitologia grega, é frequentemente descrito como filho ou irmão de Hipnos, o deus do sono e líder dos Oneiros, espíritos que trazem os sonhos. Hesíodo descreve os Oneiros como entidades aladas, filhos de Nix, a personificação da noite. Morpheus, em particular, tinha a responsabilidade de trazer mensagens aos deuses, assumindo formas humanas nos sonhos dos reis. O nome Morfeu deriva de μορφή, que significa ‘’forma’’ para alguns pesquisadores, já outros acreditam que o nome venha do μόρφνος, ‘’ escuro’’.
Filho do Sonho (cf. Hipno), é um ser alado que cria as aparições (μορφαί) nos sonhos dos homens (Ovid. Met. 11, 633-676). Apesar de sua celebridade, esta personagem parece desconhecida na cultura grega. O nome deriva de μορφή, "forma" (Perpillou, Les substantifs grecs en -εύς, § 218), próprio para as aparições que esta personagem suscita. Tümpel (eM Roscher, Myth. Lex. II col. 3215) põe-no, porém, em nexo com μόρφνος, "Escuro". (DEMOGOL, 2013, p.197)
Neil gaiman traz essa referência grega para seu personagem, construindo-o como um ser que assume várias formas. Durante a narrativa ‘’Sandman’,’ o protagonista é revelado como uma entidade capaz de mudar seus aspectos visuais, aparecendo por vezes com vestes vitorianas e cabelo arrumado, ora com túnica grega, por vezes com vestes típicas da europa ocidental em 1600 e até mesmo como um gato. Dessa maneira, é clara a relação que Gaiman faz com a mitologia grega ao criar o protagonista Morpheus com características muito próximas ao que a mitologia grega aponta sobre Morfeu.
Outro simbolismo importante é o do sonho, que também é um dos nomes atribuídos ao protagonista. Para Gaston Bachelard, o sonho é o momento em que o corpo repousa mas a alma não, já o devaneio, está relacionado com o repouso lúcido, o momento que a alma pode descansar. No adormecimento propiciado pelo devaneio, o inconsciente sofre um declínio, para retomar sua ação nos sonhos do verdadeiro sonho. (BACHELARD, 1996, p.11).
Para Chevalier, o sonho é um veículo e criador de símbolos, segundo ele o sonho:
Para Chevalier, o sonho é um veículo e criador de símbolos, segundo ele o sonho:
Manifesta também a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo, assim como as dificuldades de uma interpretação justa. A maior parte dos elementos deste verbete são aplicáveis ao conjunto dos símbolos, e a cada um em particular, pois todo símbolo participa do sonho e vice-versa. ( CHEVALIER, 1988, p.844)
Para Gaston Roupnel, o devaneio enquanto sonho e imaginação manifesta o que há de mais divino no ser humano. Cada alma tem seu deus enquanto expressão do ser universal, é aí que nasce a abertura para o devaneio, na medida em que Deus é "o sonho livre de nossas almas, a elevação superior de nosso pensamento" (ROUPNEL 1927,p.173)
Nessa perspectiva, o personagem Sonho, ou melhor, Morpheus, pode ser entendido como um símbolo que gera outros, um signo de elevação. O protagonista cria no reino do sonhar vários personagens passíveis de se observar simbolicamente, como é o caso do corvo Mattew, e o pesadelo Coríntio. Sendo assim, quando o lorde Morpheus se propõe a criar novos sonhos e pesadelos, podemos assumir que ele está na posição de criar novos símbolos, confirmando então o que os autores apontam.
- 1.2 O arquétipo da casa
Um elemento também importante para a análise é o próprio Sonhar e o arquétipo da casa. O Sonhar é o reino de Morpheus, é onde ele se fortalece, onde administra e cria sonhos e pesadelos, sendo então o espaço que o personagem mais se sente em paz.
Bachelard em seu livro A Poética do Espaço, discute como o espaço pode evocar sentimentos, podendo ser também um veículo de descoberta do espírito, da alma humana e um lugar de intimidade privilegiado para dar lugar ao sonho e devaneio. O autor coloca que “A casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz frequentemente, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (p. 200).
Durand diz que ‘’ A casa inteira é mais do que um lugar para se viver, é um vivente. A casa redobra, sobredetermina a personalidade daquele que a habita’’ (p.257). Nesse sentido, o arquétipo da casa é um cosmo que pode revelar aspectos de quem faz morada, sendo ainda símbolo de proteção e de refúgio. Pensando no Sonhar, que é a morada de Morpheus, faz todo sentido seguir essa lógica arquetípica trabalhada por Durand e Bachelard, pois o Sonhar revela aspectos da personalidade do protagonista, é onde ele está em segurança e é através dessa morada que ele se fortalece.
AS SIMBOLOGIAS EM MORPHEUS
Neil Gaiman, como um bom britânico, incorpora referências culturais inglesas na construção de seu protagonista, incluindo influências de Shakespeare e da banda The Cure. Esta última, com seus membros de aparência pálida e cabelos negros e desordenados, reflete visualmente a caracterização de Sonho: um homem alto, magro, de pele pálida e cabelos e olhos negros, quase funestos.
- 2.1 Olhos e Olhar
Os olhos de Morpheus chamam bastante atenção na narrativa. Visualmente, somos direcionados para eles pelas suas características ora fúnebres, ora luzentes.
Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2012) discute o simbolismo do olho, colocando o órgão como objeto da luz, associando o olho e olhar à transcendência, como é constatado na mitologia e na psicanálise. Em óptica o raio luminoso é direto e direito em toda a acepção destes termos. A nitidez, a instantaneidade, a retidão da luz são como a soberana retidão moral. (DURAND,p. 152 e 153).
Durand em sua leitura de Gaston Bachelard, coloca que a mitologia confirma igualmente o isomorfismo do olho, da visão e da transcendência divina.
Durand ao ler judiciosamente o folclorista Alexander Krappe, coloca o olho como símbolo soberano, aquele que ‘’se vinga’’, tem a altissima função social e suscita sempre funções intelectuais, senão morais: a visão indutora de clarividência e sobretudo retidão moral. Nessa perspectiva antropológica do olho e do olhar, ao observamos a personalidade de Morpheus fica muito clara a relação que Gaiman constrói com as raízes mitológicas, pois os momentos em que há luz nos olhos do personagem, são quando de alguma forma ele está castigando, afirmando ou exercendo sua soberania como lorde do sonhar.
- 2.2 Brancura e Negrura
O branco, cor iniciadora, passa a ser, em sua acepção diurna, a cor da revelação, da graça, da transfiguração que deslumbra e desperta o entendimento, ao mesmo tempo em que o ultrapassa: é a cor da teofania (manifestação de Deus), cujo vestígio permanecerá ao redor da cabeça de todos aqueles que tenham conhecido Deus, sob a forma de uma auréola de luz que é, exatamente a soma das cores. (CHEVALIER, 1988, p.144)Sendo assim, a brancura de Morpheus remete ao simbolismo da elevação, da transfiguração que leva à sabedoria. Além disso, o protagonista por ser o monarca dos sonhos já está sob o papel de elevação divina, visto que é uma espécie de deus. Indo para o simbolismo da negrura, segundo Chevalier:
O negro se refere, nessas representações imaginativas de uma época, a um estado primitivo do homem,onde predominariam a selvageria, mas também a dedicação; a impulsividade assassina, mas também a bondade; em suma, a coexistência dos contrários. (CHEVALIER,1988, p.144)
Nessa perspectiva, o uso de aspectos negros em Morpheus reforçam sua natureza contraditória. O personagem nos é apresentado como um ser autoritário, egoísta e insensível, porém ao longo da narrativa ele também revela sua capacidade empática, se mostra disposto a ajudar a família, assim como de rever atitudes equivocadas. Dessa forma, a caracterização paradoxal de Morpheus, em relação às oposições das cores branco e preto, revelam também aspectos de sua personalidade, funcionando como uma leitura tanto quanto os diálogos do personagem.
- 2.3 A Capa
Morpheus está sempre sendo representado em formas diferentes ao longo da narrativa e em cada representação ele nos mostra aspectos diferentes de sua personalidade, se mantendo como uma "metamorfose ambulante". A própria trajetória do personagem contribui para que o observemos sob o olhar da mudança pois acompanhamos uma história de autoconhecimento, amadurecimento e redenção.
- 2.4 Os Totens
Seguindo ainda o olhar simbólico, na narrativa o lorde Morpheus porta três totens que o ajudam a exercer seus domínios, sendo eles uma algibeira com areia, um rubi e um elmo. Esses caracteres são imprescindíveis para o personagem ser um monarca, pois eles permitem que ele viaje, molde e controle o reino dos sonhos. Esses totens tão importantes também são passíveis de significação, Chevalier em seu dicionário aborda cada um desses três símbolos e essa simbologia reflete diretamente na personalidade do personagem e na narrativa em si.
O elmo é um símbolo de potência, de invisibilidade e de invulnerabilidade, quando observamos o uso do elmo por Morpheus, ele sempre está nessa posição virtuosa de poder e elevação, também símbolo de elevação passível de perverter-se em dissimulação (CHEVALIER, p.184).
Indo para o rubi, segundo Chevalier, a pedra é um segundo portal.’’ Ela supera todas as pedras, as mais ardentes, lança raios como um carvão aceso, e cuja as luzes as trevas não conseguem apagar. (GOUMORT,1892,p.210)’’. Morpheus considera seu rubi como a ‘’pedra dos sonhos’’, ela foi criada a partir dele próprio para manipular a trama dos sonhos, pois ela abre os caminhos para o sonhar e funciona também como um portal.
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