“[…] na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade.”
- Aristóteles, Poética.
Por: Giorgio Gonçalves Ferreira
No ensaio intitulado As verdades das Mentiras, Mario Vargas Llosa, escritor peruano, levanta a questão da veracidade de suas obras. O que há de real e de ficção em uma obra literária? A esta questão, já no início do ensaio, Llosa pontua: “não é o caráter ‘realista’ ou ‘fantástico’ de uma história o que traça a linha fronteiriça entre a verdade e a mentira na ficção” (LLOSA, 2002, p. 19). Isto significa dizer que, na ficção, o que coloca a questão de sua verossimilhança — para usar um conceito aristotélico[1] — não é a correspondência ou não com os fatos realmente ocorridos, ou passíveis de ocorrerem, e isto ocorre por duas razões. A primeira é que:
[…] não é a breve história o que decide a verdade ou a mentira de uma ficção, mas que ela seja escrita, e não vivida, que seja feita de palavras e não de experiências concretas. Ao traduzir-se em linguagem, ao serem contados, os fatos sofrem uma profunda modificação. O fato real — a sangrenta batalha na qual tomei parte, o perfil gótico da moça que amei — é um, enquanto os signos que poderiam descrevê-lo são inumeráveis. (LLOSA, 2002, p. 18)
Ou seja, a obra literária é, de saída, uma tradução dos fatos para a língua escrita, e justamente por ser uma tradução, muita coisa se perde, e outras se alteram — traduttore, traditore, diz o velho adágio italiano. Ao criar uma história, mesmo que com personagens reais, o escritor termina por exagerar alguns aspectos, alterar outros, diminuir outros tantos, ocultar um tanto aqui e acrescentar outro tanto acolá; e isso não se dá em virtude de uma compulsão pela mentira, mas, antes, pela sua necessidade de criação. Assim como as crianças criam seres fictícios e enredos mirabolantes para dar vazão à sua capacidade criadora, e não por querer ludibriar os outros, também os escritor dá vazão à sua capacidade criadora; e, se ele aumenta, acrescenta, diminui, etc., é unicamente porque não está tanto preocupado em reproduzir o mundo, mas, antes, em recriá-lo, em inventar, criar o seu próprio mundo.
Nestas sutis ou grosseiras adições à vida, nas quais o novelista materializa suas secretas obsessões, reside a originalidade de uma ficção. Ela é tanto mais profunda quanto mais amplamente expresse uma necessidade geral, e quanto mais numerosos sejam, ao londo do espaço e tempo, os leitores que identifiquem, nesses contrabandos [ou nessas trocas] filtrados à vida, os demônios que os desassossegam. Eu poderia, naquelas novelas [que escrevi], tentar uma escrupulosa exatidão com as recordações? Certamente. Porém, ainda que houvesse conseguido essa entendiante proeza de somente narrar fatos corretos e descrever personagens cujas biografias se ajustassem como uma luva aos seus modelos, minhas novelas não teriam sido, por isso, menos mentirosas ou mais certas do que são. (LLOSA, 2002, p. 18)
A vida da ficção é um simulacro no qual aquela vertiginosa desordem se torna ordem: organização, causa e efeito, fim e princípio. A soberania de uma novela resulta somente da linguagem em que está escrita. Também, de seu sistema temporal, da maneira como flui nela a existência: quando se detém, quando acelera e qual é a perspectiva cronológica do narrador para descrever esse tempo inventado. Se entre as palavras e os fatos há uma distância, entre o tempo real e o de uma ficção há um abismo. O tempo novelesco [ficcional] é um artifício fabricado para conseguir certos efeitos psicológicos. (LLOSA, 2002, p. 19)
Seguindo em seu ensaio, Vargas Llosa pontua que aquilo que distingue a literatura da atividade jornalística, uma vez que em ambos os casos se tratam de narrativas construídas com palavras, e que estão submetidos a uma temporalidade artificial. Segundo Vargas Llosa, a atividade jornalística e a atividade novelística são sistemas opostos de aproximação do real:
Enquanto a novela se rebela e transgride a vida, aqueles gêneros [o jornalístico] não podem deixar de ser seus servos. A noção de verdade e mentira funciona de maneira distinta em cada caso. Para o jornalismo ou a história, a verdade depende do cotejo entre o escrito e a realidade que o inspira. Quanto mais proximidade, mais verdade; e, quanto mais distância, mais mentira. […] Documentar os erros históricos de Guerra e Paz sobre as guerras napoleônicas seria uma perda de tempo: a verdade da novela não depende disso. De que então, depende? De sua própria capacidade de persuasão. Da força comunicativa de sua fantasia, da habilidade de sua magia. Toda boa novela diz a verdade, e toda má mente. Porque “dizer a verdade” para uma novela significa fazer viver no leitor uma ilusão, e “mentir” significa ser incapaz de lograr essa ilusão. (LLOSA, 2002, p. 20-21)
Em uma passagem de As duas fontes da moral e da religião, Henri Bergson chama atenção para a existência de uma faculdade fabuladora, que ele distingue da imaginação. Para Bergson, a faculdade fabuladora é a potência criativa e bem definida que o espírito possui de “criar personagens cuja história narramos a nós mesmos”. Segundo Bergson, existem autores que são
[…] verdadeiramente obcecados por seus heróis; são levados por eles mais do que os conduzem; têm até dificuldade de se livrar deles quando terminam sua pega ou novela. […] eles nos fazem tocar com o dedo a existência, em pelo menos alguns de nós, de certa faculdade especial de alucinação voluntária. (BERGSON, 1978, p. 161)
Seguindo em seu raciocínio, Bergson lança uma intrigante questão: “Há coisa mais espantosa que ver espectadores chorar no teatro? [...] Como é possível que os psicólogos não se tenham impressionado com isso que tal faculdade [função fabuladora] tem de misterioso?” (BERGSON, 1978, p. 161-162). Se foi dito que essa seria uma intrigante pergunta é porque o público que chora em uma peça de teatro não está dissimulando uma tristeza: salvo raras exceções, o choro não se produz voluntariamente. Além disso, trata-se de um público que, obviamente, sabe tratar-se de uma ficção, sabe que os personagens não morrem ou sofrem verdadeiramente. A questão é: por que esse público que sabe tratar-se de uma ficção termina por emocionar-se a tal ponto de ir às lagrimas. Duas outras passagens da mesma obra servem para ilustrar a resposta de Bergson à questão posta. Segundo ele “deve-se observar que a ficção, quando tem eficácia, é como uma alucinação nascente: ela pode contrariar o juízo e o raciocínio, que são as faculdades propriamente intelectuais.” (BERGSON, 1978, p. 90). E, mais adiante, Bergson novamente nos diz: “Uma ficção, se a imagem for viva e obcecante, poderá justamente imitar a percepção e, com isso, impedir ou modificar uma ação.” (BERGSON, 1978, p. 91)
A arte, então, para Bergson, tem a capacidade de criar uma alucinação; fazer-nos crer naquilo que está diante dos nossos olhos, mesmo contrariando os nossos juízos intelectuais. Os melhores exemplos disso podem ser encontrados nas imagens de ilusão de ótica; nas peças de teatro, quando publico se emociona mesmo sabendo que se trata de uma ficção, como no exemplo dado por Bergson; ou na literatura, onde o fato também ocorre. Uma boa obra de arte — literatura inclusa — deve nos convencer daquilo que se nos apresenta. Esse convencimento não se dá tanto pelos argumentos e/ou conceitos, como na filosofia ou na ciência; ou por sua reprodução dos fatos, como na história ou no jornalismo. Se a arte possui seu poder mágico e hipnótico é por sua capacidade de criar essa ilusão de realidade. E, para que essa ilusão nascente tenha efeito são necessárias duas coisas (i) que nossos sentimentos — sejam bons ou ruins — estejam envolvidos de alguma forma e (ii) que o escritor empregue com destreza os artifícios próprios da linguagem[2]. Um bom romance deve nos convencer da veracidade de seus personagens e isso se faz com os dois ingredientes citados acima, mais do que com a própria reprodução da realidade.
Um bom exemplo disso encontra-se na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. A dúvida acerca da traição de Capitu não se dá senão porque (i) trata-se de uma obra cujo narrador é autodiegético, ou seja, ele narra a sua própria história e em primeira pessoa — e isso envolve um aspecto técnico da construção da obra. Além disso, (ii) trata-se de um personagem ensimesmado, taciturno, desconfiado e ciumento, isto é, casmurro. É natural que, aos olhos de alguém com esse perfil, todo ato soe como uma traição, suscite suspeitas que não poderão ser comprovadas, etc. Ora, ao escolher que os fatos fossem contados a partir de um narrador autodiegético e que era também, ele mesmo, desconfiado e ciumento, o autor cria no leitor a dúvida e a desconfiança; ou seja, o autor planta no leitor a “ilusão nascente” de que nos fala Bergson, fá-lo crer na narrativa ficcional que se passa diante de seus olhos. O mesmo efeito não seria obtido se o narrador fosse onisciente… Obviamente, o leitor sabe tratar-se de uma ficção e mesmo assim não deixa de suspeitar dos atos de Capitu. Cria-se, no leitor, o efeito esperado pelo autor. A obra Dom Casmurro nos faz enxergar o mundo pelos olhos de um ciumento, taciturno e desconfiado homem de idade já um tanto avançada e narrando fatos por sua vaga lembrança. Um outro exemplo pode ser encontrado na música Tô ouvindo alguém me chamar, dos Racionais MC’s: um mundo visto pelo olhar de alguém nascido e crescido nas periferias de São Paulo, que entrou para o mundo do crime e por ele foi morto, de um mundo constantemente à beira do perigo e da adrenalina. Tanto em um caso como no outro, temos exemplos de obras que construíram o olhar por onde a realidade pode ser percebida.
É apoiando-se nas considerações de Henri Bergson que Gilles Deleuze e Félix Guattari forjam a noção de percepto. Segundo Deleuze e Guattari, um percepto é um bloco de sensações plasmado na matéria (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 216-218). É aquilo que arrancamos de uma percepção e construímos na matéria sensível, a ponto de criar no leitor essa “alucinação nascente” que o faz ser transportado para o mundo criado pelo escritor. Esse mundo pode ser encontrado no sertão cheio de mistérios de Guimarães Rosa, ou no sertão a palo seco de João Cabral de Melo Neto; pode ser encontrado na poesia de rua e da favela dos Racionais MC’s; nas estradas de Jack Kerouac. Em todos esses casos, não se trata apenas da realidade vista em seus aspectos sociais, mas, mais que isso, trata-se de realidades vistas como zonas de intensidade, trata-se de paisagens vistas como zonas de intensidade. O sertão cheio de mistérios de Guimarães Rosa não existe objetivamente, mas existe como uma zona de intensidade; o mesmo ocorre com o sertão a palo seco de João Cabral de Melo Neto. Em ambos os casos, assim como nos demais exemplos citados, o artista cria uma zona de intensidade que habita na vizinhança das coisas. É essa zona de intensidade criada com os artifícios próprios da linguagem o que confere à obra a sua “veracidade”, ou sua “verossimilhança”. É esse o motivo, também, pelo qual obras que retratem situações completamente bizarras ou surreais conseguem, ao mesmo tempo, o efeito de “verossimilhança” citado. E — para finalizar com outro conceito aristotélico — é também esse o motivo pelo qual a obra de arte consegue o seu principal objetivo, o seu efeito poético, qual seja, a catarse.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2003.
BERGSON, Henri. As Duas Dontes da Moral e da Religião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
FERREIRA, Giorgio. Algumas considerações sobre a memória, a formação das palavras e as regras do método hermenêutico de Espinosa. In: Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 6, n. 14., jan./jun., 2022.
LLOSA, Mario Vargas. La Verdad de las Mentiras. Lima: Santillana Ediciones Generales, 2002.
Notas do texto:
[1] Sobre o assunto, conferir a obra Poética, de Aristóteles.
[2] Sobre as diferenças entre as regras de associação próprias da memória e da imaginação e os artifícios próprios da linguagem, cf. FERREIRA, 2022.
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